domingo, 7 de junho de 2020

Escada de vidro

Escada de Vidro




A escada estava lá como sempre esteve. As visitas sempre elogiavam a audácia de Samara por ter colocado uma escada de vidro (sem corrimão) na sala de estar e ela sempre dizia que era o charme da casa inteira. Ela também sempre dizia que a escada era segura como qualquer outra, mas isto era mentira.

            Josélia foi visitar Samara numa quinta-feira e não voltou mais para casa. Assim que viu a escada disse:

__ Samara! Que escada mais linda!

__ É, Josélia. Eu mesma que projetei. __ Disse Samara orgulhosa, mas já sem paciência por tantos elogios pela escada de vidro.

__ E o que é isso aqui no primeiro degrau? __ perguntou Josélia se aproximando.

Eram marcas estreladas que só apareciam no primeiro degrau.

__ Esta parte do vidro está se deteriorando rápido. __ Mentiu Samara indo em direção a um quadro com o desenho de 4 traços negros que ficava perto do início da escada.

__ Ah, eu gostaria de subir. __ Pediu Josélia rindo envergonhada por fazer um pedido tão bobo.

__ Claro, mulher, suba. __ Disse Samara.

Josélia subiu bem devagar. Sentindo cada passo e chegando no último degrau.

__ Agora desça pra ver como ela é estável. __ Disse Samara pegando um pincel em uma gaveta.

Josélia começou a descer. Virou o pé direito no terceiro passo. Caiu primeiro com o joelho numa quina (a patela se partiu em duas). Depois tentou, institivamente, parar a queda colocado os dois braços para frente, quebrando-os quando bateu as palmas das mãos em outro degrau. Deu uma bela cambalhota, machucando toda a extensão da coluna vertebral e lombar em mais três quinas da linda escada de vidro e, para finalizar, na segunda cambalhota, bateu com a cabeça no primeiro degrau da escada, aquele com as marcas estreladas, deixando outra “estrela” no vidro temperado. O corpo caiu molenga no chão com os olhos vidrados e a boca meio aberta como se fosse soltar um grito a qualquer momento.

            Samara riscou um traço cortando os outros quatro que estavam no quadro.

sexta-feira, 1 de maio de 2020

ENQUANTO VOCÊ DORME


Tudo começou em um desses aplicativos em que se pode postar vídeos curtos com conteúdos engraçados e receitas para o dia a dia. Entre os milhares, um canal surgiu timidamente. Não possuía seguidores e ou seguia algum outro canal. Não tinha favoritos ou descrição chamativa. Chamava-se “Enquanto Você Dorme” e continha um único vídeo de pouca duração que unicamente mostrava os dizeres: Você é o próximo.
Quando o segundo vídeo foi postado ainda não havia seguidores. O primeiro vídeo tinha sido visto por quarenta e duas pessoas curiosas que não favoritaram ou seguiram o canal. Diferente do primeiro, o segundo vídeo mostrava quinze segundos silenciosos de uma pessoa dormindo profundamente em um quarto escuro. Nada demais. Pelo menos até a pessoa do vídeo se manifestar nos comentários pedindo a exclusão imediata da postagem e que as autoridades seriam acionadas.
Não houve resposta por parte do administrador do canal e os gerenciadores do aplicativo apagaram o vídeo sob uma notificação de invasão de privacidade. O primeiro vídeo não foi deletado e já contava com mais de dez mil visualizações e quatrocentos e quarenta e dois comentários.
“Você é o próximo”.
Dois dias depois o “Enquanto Você Dorme” publicou mais três vídeos. Todos com o mesmo teor no primeiro. Pessoas dormindo em seus quartos. Um deles chamou atenção de todos. Se tratava de Marley Jr, jogador de futebol conhecido mundialmente, deitado em seu quarto, sem sono profundo e totalmente despido.
Imediatamente o “Enquanto Você Dorme” se tornou viral. As outras pessoas nos vídeos foram identificadas como seguidores do canal, que ficaram perplexos, mas não acionaram a justiça. Por algum motivo eles levaram como uma brincadeira. Talvez uma jogada de marketing para um novo filme. Marley Jr., por sua vez, dobrou a segurança de sua mansão e foi chamado para diversos programas para responder sua participação no “Enquanto Você Dorme”.
As autoridades abriram um inquérito e os gerenciadores do aplicativo tiveram que excluir o canal.
Milhares de pessoas, intrigadas sobre como o dono do canal obteve as imagens, conspiravam respostas. A primeira pessoa do vídeo era de nacionalidade brasileira, a segunda era canadense, a terceira era chinesa e Marley Jr. era sul-africano.
Após a retirada do canal não demorou muito para que nascessem derivados com vídeos piadistas imitando o conteúdo do “Enquanto Você Dorme”. Um jovem de 18 anos foi interrogado pela polícia após colocar vídeos nos pais e da namorada no canal “Enquanto vc Dorme of”, mas foi descoberto que ele não tinha ligação com o canal original.
Robert Kennedy, morador dos EUA, foi vítima de seu próprio canal, o “While U Sleep”, e teve a si mesmo postado enquanto dormia. Robert, por sua vez, acionou a polícia alegando que não fora ele que havia postado o vídeo e muito menos tinha conhecimento de quem havia postado. As investigações não foram levadas adiante.
A piada virou pesadelo para muitos usuários. Milhares começaram a cancelar suas contas após aparecerem em seus próprios canais que parodiavam o “Enquanto Você Dorme”.
Quando todos os canais foram excluídos, restava apenas um.
Miguel Angeles, no México, redescobriu o canal original.    
O “Enquanto Você Dorme” estava reativado. Sem seguidores. Sem postagens. Apenas existia.
Em um dia ele obteve quatro milhões de seguidores de várias partes do mundo. A apreensão tomava conta de todos e a mídia tentava encontrar mais respostas para a quantidade de pessoas que foram expostas sem qualquer vestígio de como teria ocorrido o assédio.
Os gerenciadores do aplicativo descobriram que não se travava do mesmo usuário criador do canal anterior e não conseguiram contatar o administrador. Além disso, não tinham como atropelar as próprias cláusulas de privacidade sem criar uma queda fatal no número de usuários. Autoridades federais tentaram intervir no funcionamento do aplicativo e investigar, burlando os apelos de segurança e privacidade, mas uma onda de protestos indignados se iniciou.
O “Enquanto Você Dorme” não havia publicado nada e a empresa responsável pelo aplicativo já havia passado uma informação gritante de que não se tratava do mesmo criador. Aquele canal não havia feito algo que transgredisse as regras estabelecidas pelos criadores.
Até que uma postagem foi feita e com exatamente cinco segundos, ela foi compartilhada por uma menina espanhola de dezesseis anos.
Os dizerem “LIVE, vinte horas”, em diversas línguas, brilhou na tela de milhares de seguidores afoitos. O recorde de maior número de seguidores foi batido naquele momento. 13 milhões de seguidores em 60s segundos.
A postagem virou manchete e foram feitos apelos para que não fosse dada audiência ao canal, mas tudo em vão. Faltando algumas horas para a prometida live fora registrado um número crescente de quase um bilhão de pessoas. Um número jamais visto antes.
Vinte horas.
O canal “Enquanto Você Dorme” iniciou a transmissão ao vivo.
Nos primeiros segundos foram registrados mais de setenta mil comentários inúteis e monitorados por diversos governos. Foi quando um jovem rapaz apareceu no vídeo, encolhido em posição fetal enrolado em edredons com estampas douradas, adormecido. A transmissão durou quinze segundos. Quinze longos segundos que foram gravados por mais de um bilhão de pessoas no mundo inteiro.
O rapaz no vídeo era o herdeiro do Sheik de Dubai Mohamed Ghalib Al Maktoum.
O canal foi retirado do ar quando as autoridades da Arábia entraram com o pedido.
De acordo com a entrevista, nenhum vestígio de invasão ou operação suspeita foi encontrada no quarto do filho do Sheik. O rapaz, adolescente, estava dormindo no hotel Burj Khalifa no momento em que apareceu para mais de um bilhão de pessoas.
Recluso, o jovem não deu entrevistas e a situação começou a ser levada mais seriamente pelo mundo inteiro. Como o canal conseguiu transmitir em tempo real imagens de uma das pessoas mais bem guardadas do planeta?
Governos se posicionaram para aumentar a segurança de todos os políticos e autoridades importantes. As pessoas da classe alta passaram a instalar câmeras escondidas e a paranoia extrema tomou conta da população.
Um movimento conspiracionista se formou alegando que todos estavam sendo vigiados o tempo inteiro e aumentar o número de câmeras de vigilância era tudo parte de um plano de controle dos illuminatis.
Outros grupos disseminavam que não se importavam de serem filmados enquanto dormiam e que tudo aqui era besteira.
Algumas das pessoas que apareceram nos vídeos acumulavam milhares de seguidores e davam entrevistas dizendo que terem sido filmadas enquanto dormiam tinha causado uma mudança drástica em sua vida.
O jogador Marley Jr. ganhou na justiça a censura de seu vídeo, que foi bastante disseminado lhe causando danos e prejuízos imensos.
O mundo não falava em outro assunto.
Enquanto as autoridades buscavam rastrear IP e todos os métodos possíveis para encontrar o dito criminoso, diversas influencias digitais proclamavam o direito à existência do canal para que pudessem investigar algo palpável.
O domínio do canal foi liberado pelos gerenciadores do aplicativo, mas o canal jamais voltou a ser ativado. Não naquela plataforma, pelo menos.
O Youtube era o canal mais famoso para a postagem de vídeos e entretenimento naquele momento. Foi lá que o “Enquanto Você Dorme” criou um novo domínio privado, com milhares de vídeos com dez segundos de duração exibindo, indefesas e impotentes, bilhares de pessoas deitadas em leitos, redes, chão, berços, gramados, carros e lugares diversos do planeta. Adormecidas.
Quando o canal se tornou público, pelo menos uma em cada cinco pessoas receberam uma mensagem de alguém dizendo que ela estava lá, em dos vídeos do polêmico e misterioso canal. Desde o Presidente do EUA até a sua vizinha cheia de gatos. Todos estavam lá. Você estava lá. Seus pais estava lá. Eu estava lá.  
E não havia nada a fazer a não ser esperar.
O canal publicou seu último vídeo e silenciou.
Ninguém mais queria falar sobre aquele assunto.
O mundo inteiro olhava as lentes das câmeras apreensivos.
O selfie já não era o mesmo.
A tela sempre voltada para baixo.
Permissões de gravação de vídeo negadas.
Até que um belo dia, como se não bastasse ser ver dormindo no conforto de suas camas, as pessoas se depararam com um novo canal tímido.
“Enquanto Você Acorda”.
Um único vídeo curto passava em loop infinito um breve pedido:

“Comente e compartilhe se quiser acordar”.

segunda-feira, 2 de março de 2020

Ai, calor!

          

       
  O dia nasceu quente e o sol veio com força total naquela manhã de segunda-feira. Ficar dentro de casa já não era uma boa ideia, pois estava quente, muito quente.
            Ivone morava com suas duas filhas e a irmã numa casa modéstia e humilde, mas ainda sim limpinha. A casa era bem arejada, não tinha forro de nenhum tipo e as telhas eram sobrepostas por lona. O vento circulava bem dentro de casa. Só que  há uma semana o calor havia aumentado consideravelmente na cidade, ou melhor, no mundo todo, era o que diziam os jornais. O que estava acontecendo ninguém sabia informar, as explicações eram muito científicas, mas Ivone, macaca velha que era, deduziu que o sol estava se aproximando da terra...
            Fabiana, uma de suas filhas, reclamou um dia que não estava conseguindo dormir direito, o ventilador tinha quebrado e o calor era muito grande. Fabiana, toda suada, foi correndo para o quarto de Ivone no meio da noite e pediu para dormir com ela, pois lá o ventilador estava funcionando. Nesta noite, Fabiana e Bianca, a outra filha, dormiram com Ivone. Apenas Cleide, a irmã de Ivone, não dormira com elas naquele dia.
            A cada dia que passava o calor era mais insuportável dentro de casa, e sempre, na cabeça de Ivone, vinha àquela dedução de que o sol se aproximava da terra e que destruiria Mercúrio e Vênus para depois destruir a terra num banho de fogo ardente.
           
            __ Que calor é esse? __ Perguntou Marina, vizinha de Ivone.
            __ Minha filha, tenho um mau pressentimento sobre tanto calor de uma hora para outra. __ Disse Ivone.
            __ Que pressentimento? __ Perguntou Marina curiosa.
            __ Eu, na minha humilde opinião, acho que o sol ta chegando bem perto da Terra.
            __ Ivone, os cientistas disseram esse calor é por causa da inversão térmica. __ Explicou Marina. __ A poluição está sendo confinada aqui na atmosfera e eu não sei mais explicar... Mas é por isso que ta calor, mas logo passa.
            __ Querida, é tudo mentira! __ Replicou Ivone um pouco exaltada. __ Vai chegar uma hora em que vai chover fogo, o vento vai ser quente e a água vai ser fervente. Tome cuidado para quando não for ligar o ventilador à noite, no lugar de sair vento sair fogo!
            __ Credo, Ivone! __ Falou Marina. __ Você está ficando maluca. Relaxe, colega. O bom do calor é isso. __ Marina mostrou sua roupa: uma minissaia e uma minúscula blusinha que só cobria os seios, e olhe lá. __ Vou andar assim por um bom tempo e mostrar meu corpinho de coroa sarada.
           
            Ivone era muito religiosa e acreditava piamente no fim dos tempos. E este, para ela, era o começo do fim. Os pecadores pagariam por todos os seus pecados aqui na Terra, ah, pagariam sim! Ela criara suas filhas da mesma maneira, de forma rígida e religiosamente correta. As duas meninas nunca saíram para uma festa, nem para um encontro com amigos, nem nada do tipo. Ivone proibia essa interação pecaminosa. As duas iam da casa para escola e da escola para casa, e às vezes iam para a escola acompanhadas pela mãe, como forma de fiscalização. Ivone fazia com que as duas garotas pagassem penitência por pensarem coisas feias com homens e por assistirem programas ou lerem livros “do mundo”. Cleide, ás vezes, dava uma escapada para tomar umas cervejas sem que Ivone soubesse, mas também era devota de uma religiosidade, não tão aguçada como a de Ivone.

            Na televisão os noticiários anunciavam o aumento da temperatura para 32 graus Celsius  O calor já era insuportável. E em vários lugares do mundo as pessoas estavam morrendo desidratadas, as vendas de ares-condicionados aumentara 90%. O número de idosos diminuiu 40% em todo o mundo em menos de um mês. Pessoas obesas eram internadas aos montes em hospitais, pois não conseguiam suportar tanto calor. Os clubes eram lotados no começo, mas o movimento baixou bruscamente quando perceberam que as águas das piscinas também estavam começando a ficar quentes. Alguns clubes tentaram um sistema de refrigeração para a água, mas só deu certo por alguns dias, o calor era mais forte. Várias pessoas morreram quando se trancaram dentro de refrigeradores na tentativa de se refrescarem. O consumo de líquidos aumentou consideravelmente acarretando na diminuição de 0,5% da água potável do mundo, algumas hidrelétricas deixaram de funcionar e era comum a falta de energia, eram nesses períodos de falta de energia que ocorriam mais internações. As águas que ficavam nas geladeiras não gelavam mais, no máximo elas ficavam frias, tempo depois ficavam mornas, até chegar ao limite de ficarem quentes mesmo dentro da geladeira. As pessoas já começavam a entrar em pânico, ninguém mais conseguia dormir, muitos morreram na cama.

            No meio da noite, enquanto todo mundo se revirava de um lado para o outro em suas camas. Uma explosão extremamente distante pode ser ouvida por quem estava mais atento. Em seguida um pequeno tremor no solo acordou aqueles que conseguiram cochilar. A população acordou eufórica e saiu nas ruas. Todos com roupas de baixo, as crianças nuas.
            Ivone levantou da cama já premeditando o que aconteceria naquele último dia de sua vida, último dia da vida na Terra.
            __ Preparem suas almas, pecadoras! __ Falou Ivone calmamente para as filhas que estavam à porta de seu quarto. __ Principalmente você, Cleide! __ Disse olhando para a irmã com um olhar ameaçador.
            Um grito estridente veio da casa de Marina.
            Na rua, Ivone foi até a porta da vizinha. A filha de Marina vinha correndo para sair de casa e gritando desesperada:
            __ O VENTILADOR SOLTOU FOGO E TÁ INCINERANDO A MINHA MÃE! ELA TÁ PEGANDO FOGO!
            Misturado ao grito de desespero da menina vinha o grito de dor de Marina.
            __ A hora chegou. __ Disse Ivone.
            Quando olharam para o céu, os moradores viram traços vermelhos muito longe que vinham em direção da Terra. Também conseguiam ver uma luminescência vermelha que começava a cobrir todo o céu com um vermelho escarlate que mais parecia sangue se espalhando pelo céu. Os primeiros meteoros, destroços do que um dia foi Mercúrio, começaram a cair destruindo algumas casas com explosões devastadoras. A correria começou, o desespero aflorou em todo mundo, menos em Ivone e em suas filhas e irmã, essas ficaram onde estavam e olhavam para o céu, uma pegada na mão da outra em um circulo de oração.
            Logo começou a cair água do céu, não exatamente água, mas lava. A cada pingo um grito de dor e agonia. Não havia mais abrigo para se esconder, as árvores começaram a entrar em combustão enquanto a chuva de fogo caía impiedosamente. Fabiana e Bianca choravam de dor enquanto a chuva quente corroia sua pele, Cleide segurava o choro e começava a perder a sanidade, Ivone continuava como uma pedra a olhar para o céu enquanto sua pele era derretida.
            __ Agora sim estamos pagando os nossos pecados! __ Dizia Ivone. __ O fogo queima o pecado. É melhor pensar assim, não é? È melhor pensar que a os assassinos vão pagar pelo que fizeram, que os estupradores vão pagar pelo que fizeram, que os hipócritas vão pagar pelo que fizeram...
            Cleide caíra no chão sem uma parte do rosto e com uma parte do cérebro a amostra, mas Ivone e Bianca não soltaram as mãos dela.
            __... os traidores vão pagara pelo que fizeram.
            __ Os falsos vão pagar pelo que fizeram. __ Disse Bianca às lágrimas e logo em seguida caindo no chão. Mas Fabiana não soltou sua mão.
            As pessoas que não foram atingidas pelos meteoros eram corroídas pela chuva e já viravam esqueletos no chão da rua. Um caldo vermelho estava sendo criado nos córregos, uma mistura de sangue e fogo, de pecado e purificação.
            __ Os invejosos vão pagar pelo que fizeram. __ Disse Fabiana. __ Os que têm Ira vão pagar pelos que fizeram. Os Vaidosos vão pagar pelo que fizeram. __ Fabiana, que já não tinha a face de um ser humano caiu no chão e se esparramou em víceras e pele. Mas Ivone continuava a segurar as mãos de Cleide, que se soltara do corpo, e de Fabiana. E prosseguia:
            __ Os preguiçosos vão pagar pelo que fizeram. Os gulosos vão pagar pelo que fizeram. Os avarentos vão pagar pelo que fizeram. Os luxuriosos vão pagar pelo que fizeram.
            Os gritos cessaram, já não havia mais ninguém vivo naquela área da cidade. A chuva aumentava de intensidade. Alguns minutos atrás outra explosão, desta vez extremamente alta. Seria Vênus que deixara de existir também? E Ivone falou pela última vez antes de cair queimada no chão alagado de lava:
            __ E eu vou pagar por tudo que eu já fiz

domingo, 1 de março de 2020

CRÔNICAS DO FUTURO FINAL



CRÔNICA 1 - NOS BRAÇOS DE MORFEU
Eu era ninguém. Um desajustado social que vivia vagando pelos becos escuros de Neo York. Eu não tinha dinheiro, família, nada, naquele lugar. Eu cresci como um marginal entre os Orcs nos esgotos, alimentando minhas esperanças com os restos que a elite deixava cair dos arranha-céus quilométricos que se erguiam em cada esquina enevoada. A raiva da desigualdade social, das injustiças causadas pelo sistema neocapitalista, que escravizava até a alma dos condenados da classe E, era o que me incitava a sobreviver em meio a toda aquela sujeira enquanto sonhava com um mundo melhor.
Era costume frequentar a taverna de um minotauro cyborgue que comandava a zona sudeste de Neo York, no bairro A06. Era um dos lugares mais barra pesada daquela zona, mas eu já era conhecido por lá e tinha acesso livre para fazer meus corres. Eu só deveria ter cuidado com alguns elementos que eu estava devendo...
Naquela noite a fome tinha apertado e o melhor lugar com uma comida boa, barata e com menos gosto de graxa e óleo possível era a taverna Cabana Metallica. Era um prédio vagabundo revestido com placas enferrujadas de diversos tipos de metal com uma porta automática de aço escovado que destoa do restante da construção e foi conseguida – certamente – no mercado negro dos elfos renegados.
Gastei os últimos números no meu braço para comprar alguma besteira para passar a fome. Ou enganar a barriga. Eu tinha levado uns D-crypter XPs para vender a uns batedores de carteira na esquina da Lexington com a Whiteout. Esses aparelhozinhos cheios de fios coloridos podiam invadir e roubar qualquer coisa, inclusive os números de câmbio da mente dos drogados que iam ao Dreamx para viver nas ilusões de um mundo perfeito construído por códigos binários. Eu mesmo já fiz isso várias vezes quando criei o D-crypter XP e comecei a vender nas sombras do submundo. Só que eles foram equipados com um software auto destrutivo que sobrecarregava e fritava o chip de memória, inutilizando o aparelho. Apenas se podia usar uma vez e eu vendia muito. Eu era esperto demais.
Quando eu saí da Cabana Metallica não percebi a emboscada armada por um dos meus ex-clientes, um dos quais eu enganei muito, diga-se de passagem. Eles aguardaram pacientemente que terminasse minha refeição e tomasse uns drinks fortes de Metilona. Quando eles me agarraram ainda me dosaram com serummorfin – que fez um efeito interessante quando misturou com o álcool no sangue. Fiquei um tempo desacordado sonhando coisas boas sem imaginar o que viria.
Sabe, eu sobrevivi muito tempo naquele mundo hostil, o suficiente para entender que um malandro não foi feito para durar tanto. Eles me drogaram com Chimera até conseguir o segredo do software no D-crypter XP. Quando conseguiram roubar todos os meus segredos técnicos, passando por todos as barreiras protegidas do meu cérebro, eles me overdosaram. Eu morri feliz. A Chimera é uma droga forte, usada na Dreamx para criar ilusão monitorada por um supercomputador, mas em alta dosagem pode sobrecarregar sua mente e fazer você entrar em atividade neural de sono permanente. E aliada à Metilona e ao serummorfin...
O que aconteceu com meu invento eu não sei, mas os elfos negros que o roubaram vão fazer um ótimo proveito dele.
E o que restou de mim?
Eu ainda sou o mesmo.
Apenas um menino que sonha com um mundo melhor.
Agora para sempre.

CRÔNICA 2 - EFEITO DOMINÓ
A taça de champanhe esvaziava lentamente enquanto eu navegava pela webnet procurando informações que noticiaram o lançamento da minha nova coleção no FashiOne Weekend. Os meus designs foram especialmente desenhados para serem "Um deleite visual!", de acordo com o Neo York Wall; "Fruto de um gênio indomável das passarelas", na página principal do N1Y; e "Verdadeira obra de arte da alta costura" no ChroNews. Uma grande vitória que eu passaria na cara de todos que não acreditaram na minha ressurreição diante da última e fracassada coleção, quando até a Forgery, uma moda para anões e halflings, e a Misfits, que eram baratas e populares e com menos padrão de qualidade, conseguiram compradores importantes e eu não.
Quando assumi o controle da empresa, eu era uma promessa daquele mundo ingrato. Um sonhador como qualquer um outro nessa cidade, preocupado em manter meu status para não acabar nos esgotos da vida dividindo meus fracassos com os taverneiros na zona sul, provavelmente tendo me dobrar a trabalhar para uma empresa baixa qualquer como a Misfits.
Enquanto enchia a taça novamente, eu estava lendo alguns comentários dos usuários da SOMA, a maior rede social do mundo, e fiquei surpreso pela quantidade de pessoas que assinaram a página Hidden Tops - um mural repleto de notícias de procedência duvidosa sobre a elite. A princípio não negarei que passei a assinar a página porque havia uns posts sobre a família Rock'n'feather, fofocando sobre as excentricidades da socialite Ravenna, filha de um megaempresário, que abalava os bairros nobres flutuantes com suas festas e glamour. Outros posts comentavam ainda mais sobre outras poderosas famílias, como os Blackwoods e os Van der Leaves, dois distintos clãs élficos.
Um dos posts parecia mais uma fofoca enviada por uma fonte anônima, como estava escrito, e comentava sobre o possível contrabando e abuso de substâncias ilícitas pelo filho pródigo dos elfos negros da casa Blackwood. Havia uma foto do jovem comprando as substâncias e outra com ele já drogado no FashiOne da noite passada.
Os Blackwoods provavelmente estariam furiosos se soubessem disso, mas como os Elfos - e especialmente eles! - não costumam usar a SOMA, eu usei minha prestigiada conta na rede social élfica exclusiva, a Mellon. Entrei no perfil do Blackwood e enviei o link por inbox. Ele precisava ver o que sua prole andava fazendo pelas baladas da vida.
Passados uns minutos eu recebi um e-mail de um usuário chamado 90551P 91RL. Eu simplesmente não acreditei no que vi. Esse usuário era o dono da página Hidden Tops e me enviou a próxima notícia que iria bombar em sua página na SOMA: A nova coleção da VauxHaus é uma FRAUDE!
Se não fossem as provas concretas do meu crime anexadas naquele e-mail, eu não teria temido tanto. Havia fotos, vídeos e áudios das minhas transações com crackers que roubaram a coleção da concorrente Sage & Istari, antes dela ser lançada.
“Quanto você quer para não divulgar esse material?” -, digitei em resposta, suando frio. O pop-up de um novo e-mail chegou quase que instantaneamente: “Nada que você possa me dar. Hasta la vista, baby”.
E de repente a página principal do Hidden Tops publicou meu nome e toda aquela sujeira. Eu estava completamente ferrado. Eu sentia os números no meu braço querendo apagar. Recebi ligações dos meus advogados ao mesmo tempo em que a imprensa noticiava a bomba e os representantes da Sage & Istari iniciaram uma videoconferência para o mundo inteiro. Eu peguei o bracelete BankUp e removi toda a quantia no meu braço. Era muito número para perder num processo. Peguei um elevador e desci abaixo da névoa que dividia as classes D e E. Ninguém me encontraria enquanto estivesse lá embaixo, mais próximo dos anões e orcs. Tomei um transporte ativando uma magia do iSpell para me camuflar e quando cheguei ao apartamento na zona leste, o iSpell notificou uma nova mensagem.
“Não vou divulgar isso na SOMA, é só pra você saber que eu sei”
90551P 91RL

Anexada ao e-mail havia uma foto do meu apartamento. Um imóvel no bairro anão na avenida DurinWall que eu achava que ninguém sabia da existência. Terrorista filho de um troll! Eu enviei um e-mail de volta, meu rosto começava a esquentar de raiva. Ninguém me trataria dessa forma e sairia impune. Eu enviei um feitiço rastreador para descobrir a fonte do e-mail, mas quando o sinal subia ao céu era interrompido por um firewall mais poderoso. Quem quer que fosse o tal usuário 90551P 91RL, era um membro da elite. Seria impossível saber a identidade. Uma nova mensagem abriu no canto.
“Ulliel Blackwood sabe que você mandou o link para o Blackwood pai. Se eu fosse você me preocuparia muito mais com sua vida que em me rastrear”
90551P 91RL.
Quando o último e-mail chegou, eu notei que minha inbox na Mellon tinha uma mensagem do Ulliel. Não havia nada escrito além de uma foto de um prédio escuro. Invadiram o apartamento tão rápido que eu nem senti. Contudo, além de estilista e megaempresário, eu era um techmago. Se eu não saísse vivo dalí, ninguém mais sairia. Decididamente eu levaria todos comigo. Quando Ulliel Blackwood apontou sua arma para mim, meu iSpell já tinha carregado a mais potente magia que havia aprendido, a supernova.
Mil trezentos e cinquenta e sete pessoas foram eliminadas com sucesso.
A tela inquebrável do iSpell revelava o fim do bairro inteiro.
A manchete no Hidden Tops brilhava no canto:
ATENTADO TERRORISTA EM BAIRRO ANÃO.
Foi assim que a guerra começou.   


CRÔNICA 3 - PRODÍGIO
Fazia uns meses que eu vinha perseguindo e investigando o Dr. Sage a serviço da NPD - Neo Police Dept. O sujeito era acusado de terrorismo por vender novas versões, atualizadas de forma não autorizada, da ave mitológica Fênix. As minhas habilidades como hacker já me meteram em muitas enrascadas, mas também me salvaram de muitas outras. Cara, eu sou muito bom no que faço, mas quando se é um hacker num mundo tão caótico como esse, um deslize e você caí num poço profundo.
Meu poço profundo foi acabar dedicando minhas habilidades ao roubo de informações para o serviço secreto do país, já que tinham me detectado e prendido enquanto eu invadia o supercomputador da multiempresa tecnomaga ArcTech. Era uma relação de amor e ódio com o serviço secreto e eu iria receber tantos números de câmbio que seria preciso comprar novos braceletes BankUp para armazenar.
O meu destino drsticamente mudou quando o firewall do sistema da foi ativado e o meu modo stealth foi desativado. Fui obrigado a encontrar um terminal de saída antes que as magias de segurança me alcançassem. Percebi que eu não era o único que havia invadido a ArcTech e que o alarme não havia sido ativado pela minha imprudência. Havia alguém me trollando no sistema. Um agente, desses mais idiotas, tentou quebrar os códigos de segurança da divisão de genética e biotecnologia usando uma ferramenta mais ultrapassada que telas de LED. Graças ao desvio que o sistema deu ao perseguir o troll imbecil, eu consegui tempo para quebrar os códigos de segurança anti-stealth. Meu iSpell tinha um meio de criptogafar a magia da invisibilidade me dando o mesmo efeito, mas com um novo código gerado, impedindo que o sistema me reconhecesse rapidamente.
O meu iSpell não era um dispositivo comum, era um dos poucos no mundo que rodava o Googleplex OS. Eu consegui quebrar as senhas do software que os tecnomagos colocavam em seus aparelhos, o Imprisoned. Não foi fácil, mas eu tive uma boa educação. Com o imprisoned burlado, eu fiz um dual boot com o sistema Applex OS e agora eu tinha duas poderosas ferramentas contidas no melhor hardware do mercado depois do Electome, criado pelos elfos. Embora o Googleplex OS fosse muito fácil de invadir, a minha habilidade com tecnomagia me ajudou a ligar os códigos do Applex OS com ele, criando um novo seguro sistema operacional: O Fusion OS. Eu mesmo que dei o nome.
Com meu iSpell turbinado, consegui descobrir que o segundo invasor do sistema era um usuário do governo. Um agente infiltrado. Um idiota enviado para fazer besteira. Qualquer breaker que se preze sabe que não se pode invadir um supercomputador usando a webnet. A webnet é uma rede mundial. Está presente em todos as máquinas no mundo, é fácil de se locomover e mais fácil ainda de se identificar, mas a cybernet é particular, mais fácil de quebrar uma vez que se tenha acesso. Todo supercomputador possui as duas redes. Uma delas para o mundo, outra para os internos. Conseguir a senha de um interno não foi difícil, mas invadir o sistema sem dar aviso de conexão foi, mas graças ao meu iSpell, consegui.
O agente do governo estava procurando um terminal para sair da cybernet, agora que o cerco estava se fechando graças ao incrível anti-breaker que o sistema tinha. Eu poderia sair por onde entrei, já que o terminal estava protegido pela senha de usuário interno que não foi logado, por isso não foi identificada a abertura, mas o sistema não iria deixar o agente sair. Não inteiro, pelo menos.
Quando o meu iSpell me enviou um código de rastreamento OPN - Omega Protocol Network, eu sabia que não era mais brincadeira. A coisa estava ficando séria. O sistema da ArcTech havia logado os avatares dos tecnomagos para uma única tarefa: Rastrear e destruir. O Fusion OS não conseguiu identificar a localização dos tecnomagos, pois o inprisoned dos iSpells deles estava impedindo uma conexão por desconhecimento parcial do sistema operacional. Um Applex OS só se conecta com outro Applex OS. Contudo, qualquer operação que fosse feita eu saberia em questão de segundos. E, em questão de segundos, eu estava sendo perseguido por uma magia devastadora que bloqueou meu radar.
Quando o efeito da System Blindness se desfez, era tarde demais. O agente havia sido encontrado tentando abrir uma porta clandestina num setor de atendimento ao cliente. Outro grande erro desses idiotas, achar que um setor movimentado também deva possuir mais portas. Não havia nada que eu pudesse fazer. Os códigos que eu queria encontrar já deveriam estar mais protegidos que o arranha-céu dos dragões. Eu saí do sistema e voltei a tempo do meu iSpell começar e pedir carga e de ser preso pela NDP, por tentativa de roubo de informações privilegiadas e invasão de rede privada. Para abrandar a minha sentença, eu ofereci meus serviços para treinar os operadores secretos deles. Eu sabia que eles também tinham invadido o sistema, mas não obtiveram êxito ao sair. Imagina se os tecnomagos descobrem que a polícia tentou invadir o sistema deles...
Para que eu não abrisse minha boca, fui nomeado a um cargo na divisão secreta da polícia. Eu treinava os invasores e rastreadores. Consegui vender a patente do meu Fusion OS, mas não dei os códigos de instalação. Você sabe quantas pessoas ficam milionárias da noite para o dia, roubando informações privadas, ganhando um cargo elevado no governo, vendendo patentes tecnológicas ao serviço secreto e tendo apenas treze anos? Pois é, quando eu entrei nessa era só para conseguir uma grana para comprar o novo PlayStation Infinity da SONY. Agora eu tenho tudo.
      


sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

ATÉ O AMANHECER


Um conto de Dead By Daylight


Kelly corria sem fôlego pelos corredores do prédio abandonado. Quase não puxava o ar. O desespero já tinha sido bem maior quando ela percebeu o que estava a perseguindo. Tinha combinado com os outros que ela encontraria o jeito de atrair o monstro para que conseguissem terminar a missão. Ela não entendia porque havia sido escolhida e nem como tinha sido transportada para aquele lugar decrépito com fedor de morte em cada canto e demorou para entender de uma vez por todas que o vulto nos milhares de espelhos espalhados pelo local estava ali para sacrificá-los em um ritual macabro de magia negra.
 Enquanto reunia o pouco de coragem que lhe restava, observando cautelosamente os cômodos escuros cheios de tralhas, ela percebeu que o único espelho ali estava virado para a porta, ao lado de uma janela aberta que dava para uma piscina vazia. Era o local perfeito para fazer a coisa mais estúpida do mundo. Ela se aproximou no espelho, prendendo a respiração ruidosa. Não tinha escutado gritos, logo os companheiros estavam vivos. Ainda. O espelho era quase de seu tamanho, como todos os outros encontrados no local. Estava manchado com sangue seco, talvez de antigas vítimas. Quantas já deveriam ter passado por ali e mirado seu próprio reflexo por alguns segundos antes que os olhos do demônio espreitassem de volta?
Sem abrir espaço para mais medo, Kelly sentiu o coração disparar. O espelho começou a escurecer seu reflexo, como se uma névoa infernal tomasse conta e ela não aguentou. O grito cortou a noite. Ele já sabia onde ela estava. Era só uma questão de segundos.
***
Robert saiu silenciosamente da cabine em que estava escondido quando escutou o eco de um grito. Será que a coisa tinha conseguido pegar Kelly? Ele não poderia ficar ali parado pensando mais sobre isso. Precisava sair vivo daquela situação. A máquina jazia no lado esquerdo da cabana, de frente para um enorme espelho grosso. Era arriscado demais, mas ele não tinha muita alternativa. Os outros estavam se sacrificando para que ele conseguisse consertar aquilo o mais depressa possível. Passou pelo espelho sem olhar seu reflexo, Ele descobriu que se não olhasse para o espelho, o espelho não olharia de volta. Isso não impediria que o monstro assassino adentrasse naquele momento e o agarrasse com muita força, prometendo horrores de tortura e sofrimento. Ele já tinha sido pego uma vez, não poderia mais – não tinha mais energia vital – para sobreviver outra daquelas. Se não fosse Roger e Kelly, ele estaria indo para o covil da criatura, ser devorado aos poucos, pendurado como uma carne fresca em um abatedouro. O sangue drenado para o banquete final.
Mais um pouco e aquele gerador estaria pronto. Restaria apenas um e ninguém tinha morrido. Ainda.
***
Demorou para entender que o realmente estava acontecendo. Até cair a ficha, Laquanda passou o dia todo tentando abrir os portões de saída e entrada naquele cenário de horror. Quando todos acordaram pela manhã, não passava de um lugar abandonado, esquecido pela vida e cheio armadilhas estranhas, espelhos e uma presença sinistra que fazia os pelos arrepiarem. Não demorou muito para que ela conhecesse os outros confinados. Roger, um nerd gordo, Kelly, uma ginasta olímpica e Robert, um mecânico dessas oficinas de beira de esquina. Cada um deles foi muito importante para descobrir o que estavam fazendo naquele local estranho e porque todo mundo sentia como se algo os espreitasse de vez em quando.
Juntos eles fizeram uma varredura no local. Não era um espaço muito grande. Dava para ver bem de todos os quatro cantos as muralhas altas, grossas e escorregadias que cercava o local. Elas acabavam em dois grandes portões que tinham uma abertura eletrônica. Desligada. Robert e Roger notaram que o local inteiro possuía fios subterrâneos e câmeras por todos os lugares. Tudo desligado. Foi assim até o anoitecer, quando uma névoa densa começou a se espalhar pelo ambiente e tornou tudo mais desagradável do que já era. Contudo, Roger percebeu: As câmeras ligaram, mas os portões continuavam fechados, ligados pelos fios até geradores espalhados pelo lugar. Robert, como era mecânico, descobriu que eles estavam inteiros, apenas desmontados de forma planejada. Ele reuniu as porcas e parafusos, ligou os fios e ensinou todo mundo a fazer aquilo funcionar. Laquanda, que não era muito boa em quase nada, ligou um fio com outro que não deveria. O estrondo assustou todo mundo. E foi aí que tudo começou...
***
      Kelly corria pelo prédio com o demônio em seu encalço. Ela não conseguiu conter o grito quando ele se aproximou e atravessou o espelho como se ele fosse água. Ela não entendia como ele conseguia enxergá-la, visto que não havia olhos, apenas uma cavidade oca e sangrenta com um odor nauseante. Mesmo assim a cabeça se virava na direção e o monstro perseguia implacavelmente. Kelly saltava as janelas e tralhas que apareciam pela frente. O monstro, contudo, não tinha essa habilidade e acabava tendo que contornar os obstáculos, dando tempo a ela.
Com todas as dicas de Roger em mente, a ginasta sabia que não poderia ficar muito tempo correndo dele, porque ele acelerava gradualmente à medida que perseguia. A segunda dica foi que ele conseguia – de alguma forma – usar os espelhos como transporte. Se olhassem para o reflexo no espelho ele saberia. Laquanda teve a brilhante a ideia de quebrar um dos espelhos e isso foi a pior coisa que ela poderia ter feito. A criatura ficou repleta de cacos de vidro encravadas na pele e ainda mais assustadora. Quando Robert foi pego pela criatura consertando mais um dos geradores, Roger e Kelly tentaram chamar atenção do monstro para que ele escapasse e os cacos de vidro tornaram tudo mais difícil. Robert somente escapou porque Roger, corajoso, se colocou na frente da criatura, mirando uma lanterna que tinha encontrado no meio da bagunça. Conseguiram escapar por pouco...
***
A escuridão avançava pela madrugada e a criatura estava começando a temer, pela primeira vez, os sussurros da Entidade. Apesar de conseguir rastrear os rostos de quem espreitou o próprio reflexo pelos espelhos malditos, o Atormentador não estava lidando com um grupo de presas comum. Esses eram diferentes, eles eram mais espertos e habilidosos. Não era a primeira vez que ele havia sido convocado para mais uma caçada de sacrifício, mas era a primeira em que estava sentindo o peso da derrota. Nunca havia poupado uma alma sequer e agora era obrigado a farejar com mais força se quisesse, pelo menos matar uns dois antes do raiar do dia. Dos sete geradores espalhados pelo mapa, restavam três. Eles só sabiam da existência de mais dois, nunca exploraram o canto sul com mais calma, talvez pela falta de portões de saída daquele lado, talvez pelo medo intenso de não conseguir voltar...
O cheiro de sangue fresco no rastro da garota mais nova atiçava ainda mais o monstro. Ele queria estripá-la, fazê-la sofrer pela audácia de escapar pela segunda vez. Ela estava começando a entender o jogo dos espelhos e estava usando isso para atraí-lo para o mais longe possível do gerador que ficava na cabana. Quando os sussurros da Entidade indicaram mais um reflexo no espelho, a criatura se deslocou rapidamente na escuridão do mundo espelhado e avançou no infeliz que ousou provocá-lo.
Era o gorducho. Tremendo no canto da sala, tentando saltar uma barricada. A criatura conseguia ouvir o coração dele batendo descontroladamente. Ele não ia conseguir a tempo...
***
Um alarme sonoro de longo alcance permitiu que todos aguçassem seus sentidos. Kelly, imediatamente observou que as luzes do painel do portão mais próximo se acenderam. Robert tinha conseguido consertar o último gerador. Enquanto corria, ela percebeu um estranho emaranhado de ossos, gravetos e caveiras humanas iluminado por velas. Ela não tinha mais tempo para descobrir o que era aquilo. Provavelmente parte do ritual insano que acontecia naquele lugar.
Ela se aproximou dos portões. Seu coração batendo mais do que nunca. A energização parecia acontecer de forma muito lenta. De repente, do meio de altos arbustos espinhosos Laquanda surgiu mancando, a perna dilacerada deixando um rastro.
- Kelly! Kelly! Ele pegou o Roger - aquela coisa - , pegou o Roger e levou para um buraco!
Kelly sentiu a adrenalina em cada parte do seu corpo. Não podiam deixar Roger nas garras no monstro. Talvez nem vivo estivesse mais, mas precisavam ter certeza. Antes de ir, ela ajudou Laquanda a fazer um torniquete. O sangramento tinha parado, finalmente. Laquanda contudo, não esperou para descansar mais, correu gritando loucamente sem rumo. Foi quando Kelly percebeu que o monstro estava vindo, decidido, na direção dela.
***
  Robert encontrou um portão energizado depois de ter se esgueirado para fora da cabana e rumado para o lado norte. Por um segundo, seu coração bateu muito rápido e ele sentiu um zumbido estranho. A criatura tinha passado por ali, certamente. Sem mais delongas, ele puxou a alavanca e esperou. A qualquer momento a porta abriria.
***
Laquanda estava atrás de uns caixotes, observando a destreza de Kelly. Ela não estava ferida e caso a criatura chegasse a feri-la, pelo menos ela tinha mais chance. Laquanda, por sua vez, com aquele torniquete podre, mancando, ela seria um alvo fácil para a criatura.
Subitamente, e fazendo Laquanda pular de susto, um outro aviso sonoro ecoou por todo o lugar. Apavorada, ela seguiu correndo no momento em que viu a criatura descer um golpe cheio de cacos de vidro na cabeça de Kelly. Tudo estava perdido.
***
Como previsto pelo Atormentador, as presas não tinham ideia da oferenda que tinha sido feita para que a Entidade lhe abençoasse com mais força. Ele mesmo a fez com os ossos das vítimas anteriores. Era provável que apenas um deles tenha escapado. O gordo estava pendurado no ponto mais profundo do local, o covil. A outra moça, a desesperada, era se arrastando, pronta para morrer a qualquer momento. E a corredora atrevida finalmente iria receber o que merecia. Ele a carregou nas costas aproveitando que ela não conseguia se debater com força por causa dos pedaços de vidro lhe perfurando a carne a cada tentativa. Ninguém iria ajudá-la. Até que foi uma boa caçada, mais empolgante dos que as outras. Quando ela observou o ganho ensanguentado erguido próximo de uma árvore, o Atormentador sentiu a agonia crescer violentamente. Nada poderia ser feito. Ele içou o corpo magro dela no ar e mirou. Foi rápido, fácil e profundo. O grito atravessou a arena da morte e a criatura sentiu que alguém estava próximo demais de seu covil...
***
Robert não aguentava mais esperar. A salvação estava ali diante dele e tudo o que ele conseguia escutar eram gritos de tormento e dor. Nem sinal de Roger, Laquanda ou Kelly. Ele tinha quase certeza que o último grito foi de Kelly, muito próximo de onde supostamente estaria o segundo portão.
A coração disparou. Não dava mais para esperar.
Robert deixou a saída para trás e adentrou na névoa, correndo na direção do segundo portão. A qualquer momento ele poderia dar de cara com o monstro, mas jamais ele deixaria com companheiros para trás.
Foi então que ele viu. Como um enorme pernil bovino pendurado em um ganho de abatedouro, estava Kelly quase desfalecida. O sangue empoçando no chão.
- Meu Deus! Kelly, eu vou te tirar daí aguenta firme.
Ela apenas piscou os olhos, enfraquecida, tentando focar no ambiente, rezando para que a criatura não estivesse a usando de isca.
***
Roger estava praticamente morto, lutando para se manter acordado e sentindo que sua visão estava ficando escurecida com formas em formas de garras ameaçando agarrar deu corpo pendurado. Ele estava em uma espécie de quarto subterrâneo de tortura lavado de sangue seco e com ganchos por todos os lugares. Não dava mais para esperar. Ele sabia que não iria escapar vivo, então decidiu juntar o que lhe restava de força, agarrou a corrente do gancho e tentou se projetar para cima, retirando o ganho do corpo, mas ele era pesado demais e suas mãos ensanguentadas escorregaram. A dor foi tão intensa que ele nem percebeu que seus pés tocaram algo sólido, mas não era o chão.
Laquanda usou suas costas para impulsionar Roger, que recobrou o fôlego, o corpo em choque, e fez a maior força de sua vida para escapar do gancho.
O coração de ambos estava disparado. Roger tombou no chão cheio de adrenalina. Não dava mais para ficar ali. Tinha apenas uma saída: uma escada em espiral que levava ao terreno na superfície. Um zumbido estranho os alertou. A criatura estava perto. Perto demais...
***
Robert abriu o segundo portão de saída enquanto Kelly descansava próximo. Talvez Roger e Laquanda tivessem escapado pela outra saída. Ele não tinha certeza.
- Eu abri o outro portão. Laquanda e Roger podem ter...
- Não, Laquanda está ferida e Roger foi pego pela criatura. Ele me disse que viu isso acontecer. Precisamos sair daqui logo, Robert, ou TODOS nós morremos antes do nascer do dia.
Robert baixou a cabeça. Mais uma vez a sua humanidade posta à prova. Ele inspirou fundo.
- Eu estava pronto para sair, Kelly. Mas voltei por você. Você acharia melhor se eu tivesse pensado do seu jeito?
Foi a vez de Kelly baixar a cabeça.
- É, foi o que eu imaginei. Fique encostada aqui. Eu vou voltar com os outros. Se eu não voltar até o raiar, vá. Corra. O mais rápido que conseguir. Está me ouvindo?
Ela assentiu e ele disparou novamente no meio da névoa.
***
Laquanda entrou em um nos armários próximos no instante em que a criatura desceu as escadas. Roger estava escondido atrás de uma da parede de madeira que serviam de sustento. A qualquer momento a criatura iria passar pelo armário e vasculhar o local, encontrando Roger desprevenido.
O monstro parecia saber que tinha gente por ali. Ele estava parado, sem fazer barulho, apurando um deslize.
Ele andou mais um pouco. Parecia que deslizava, pois som algum era emitido. Dava para sentir o odor pútrido que ele exalava. O corpo esquelético, retorcido e os membros enormes como tentáculos com garras. Ele possuía duas fendas no lugar do nariz e farejava de forma horrenda.
Laquanda estava juntando forças e coragem para abrir o armário e sair correndo escada acima. Dessa forma Roger pode ser salvo daquele lugar infernal. A criatura viria atrás dela com toda a ferocidade, mas não havia mais nada o que pudesse ser feito.
Ela tomou fôlego, encostou a palma da mão na porta do armário. Estava pronta. A criatura já estava perto demais de Roger. Talvez já devesse ter sentido o cheiro do sangue fresco.
- Roger?
A voz de Robert desceu pelas escadas. A criatura se empertigou. Silenciosamente ela se deslocou para a entrada. Laquanda conseguia ver Roger se esgueirando por trás do monstro e a sombra de Robert descendo para a morte...
Foi tudo muito rápido. A criatura avançou loucamente passando pela armaria onde Laquanda estava escondida. Roger tinha a intenção de pular na criatura para salvar Robert e Robert apenas gritou de terror, incapaz de se mover.
A porta do armário bateu com tudo na cara do monstro quando ele atacou. A criatura urrou de ódio e dor. Roger cambaleou por cima dela e Laquanda apenas correu escada acima, com os amigos em seu encalço.
***
- Meu Santo Deus! O que era aquela coisa?!
Robert estava guiando todos enquanto corria exaustivamente em direção ao portão. Ele sabia muito bem onde estavam. Ao olhar para trás, ele viu que Laquanda conseguia correr, mas dava uma ou duas mancadas de vez em quando. Roger, no entanto, era pouco atlético e olhava constantemente para trás, a mão no peito, arfando em um misto de horror e cansaço.
Robert sabia que o momento alcançaria um dos dois a qualquer momento. Ele ganhava velocidade e mirava nas costas de Roger.
O golpe veio. Roger se desequilibrou. Estava perdido.
Laquanda tentou parar, mas a criatura não quis pegar Roger. Ela continuou a caçada.
Robert apontou para os portões de saída. Menos de vinte metros eles estariam salvos.
O monstro assassino estava quase os alcançando quando Robert atravessou os portões, sem conseguir mais olhar para trás.
A névoa densa o engoliu.
***
Roger jazia no chão, acabado. A barriga pesava enquanto ele se arrastava para longe da terra e do mato seco. Havia uns caixotes empilhados por perto. Talvez se ele se escondesse atrás dele a criatura não o veria.
Enquanto se arrastava, ele sentia o resto de sangue que lhe estava sair pelas feridas provocadas pelas garras profundas do monstro. Triste fim. E pensar que na noite anterior ele tinha ido para uma festa pela primeira vez e beijado uma garota. Ele não entendeu como tudo aquilo estava acontecendo com ele. Atrás dos entulhos tinha uma pilha de madeiras velhas e pallets em pedaços, ele deitou por ali e sentiu o coração bater mais rápido. Ele sabia o que aquilo significava.
***
Kelly não aguentava mais. Apesar do sermão de Robert, ela não conseguia mais se manter acordada. Estava cansada, com fome, machucada e apavorada. Olhou para trás, mais uma vez e tudo o que ouvia era o silêncio. Atravessou a saída. A névoa espessa a engoliu.
***
   Três saíram. TRÊS!
O Atormentador abriu bem as fendas no rosto retorcido e começou a procurar. Ele tinha deixado o corpo ali, pronto para o abate. Aquele não seria sacrificado como deveria ser, aquele seria morto de forma especial.
A criatura gritou de raiva. Seu rugido pode ser ouvido pelos quatros cantos. Era o jeito apavorar as presas. Ele procurou pelas redondezas, ele jamais escaparia, pois assim que a criatura o visse, agarraria com força e o mataria com as próprias mãos.
O rastro de sangue o denunciou.
O monstro chegou até mesmo a sentir fome. Comeria ele vivo, talvez?
Em uma pilha de caixotes, era onde o rastro terminava.
A criatura foi se aproximando, aproximando...
O corpo estava lá, entrando por um buraco escuro no chão. A escotilha!
A criatura avançou com todo ódio, força e ferocidade, mas a presa deslizou completamente para dentro. 
A respiração ruidosa do monstro passou de raiva para medo. Sem o sacrifício necessário, a Entidade iria atrás dele, o obrigando a caçar vítimas naquele mundo de sofrimento por toda a eternidade. Talvez a Entidade tenha decidido ajudar aqueles quatro, punindo o assassino por sua soberba infernal. Talvez tenha apenas sido sorte. 
A criatura jamais saberia, pois os primeiros raios de sol rompiam a aurora.
Tudo estava acabado.

O Atormentador
 


segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

Asas




            __ Que bom que vocês voltaram. __ Falou Hyde sorrindo. Era um sorriso genuíno. Um sorriso que não era dado há muito tempo. O quarto estava na penumbra, uma vela no chão iluminava o local. Em seu rosto havia uma cicatriz fina de um corte que formava uma linha obliqua do topo de sua orelha direita até o lóbulo da esquerda.
            __ Eu preciso contar como eu consegui voar. __ Continuou Hyde. __ Eu sei que parece um absurdo. Porque realmente é. Estão vendo minhas asas? __ Ele se levantou da cama, ficou em pé, descalço, perto da vela e levantou os braços. Doeu. Seu corpo estava com hematomas e arranhões. Olhou para imensas asas brancas manchadas de sangue. Algumas penas flutuavam pelo ar quente do quarto, o vento soprava de uma janela aberta. Hyde não olhava mais para baixo quando falava com seus ouvintes, isso acontecia antes dele aprender a voar, agora ele olhava firmemente.
            __ Eu estava na montanha que falei pra vocês antes. Aquele lugar pacato, mas que estava me fazendo quase explodir de dentro pra fora. Isso já explica que o que precisava ser resolvido era dentro de mim. __ Ele olhou para esquerda, esperou um pouco e acenou a cabeça. __ Mas também tinham “coisas” que precisavam sair de mim para que eu pudesse voar. __ Olhou para direita, esperou um pouco e novamente acenou a cabeça.
            __ Assim que cheguei na montanha sempre andei calçado, não queria colocar os pés no chão. Não queria me sujar. Passei tanto tempo assim que nunca me permiti sentir o calor daquelas pedras, da grama que tinha lá em cima. A chuva! Eu me escondia da chuva. Eu não queria me molhar. Eu era cheio de restrições. A coisa que eu mais odiava na minha vida: restrições. E lá estava eu me restringindo a sentir as coisas por medo de gostar e não poder mais me culpar pela falta de liberdade que eu me impunha... __ O silêncio pairou naquele quarto da mesma forma que uma reticência deixa um vácuo entre um mundo e outro. O corte em seu rosto começou a sangrar.
            __ Passei um tempo assim. Olhando para meus pés. Olhando para o horizonte. E olhando para o céu. Parado. Só olhando. Tudo que eu precisava estava lá. Só precisava agir. Mas eu ainda estava com medo de ser bom. De gostar. Sofrer com o que eu já sabia era tão confortável. Não teria problema nenhum em colocar os pés descalços na montanha, eu queria colocar. Eu queria sentir a chuva. O vento. Eu queria voar. Mas, até aquele dia, desde o momento em que cheguei na montanha, eu só pensava no que poderia ser. Eu não estava aguentando mais. E a força do medo me fazia ficar parado. Então eu pensei no que um filósofo escreveu um dia: “E se eu vivesse minha vida mais mil vezes e elas fossem completamente iguais àquela porque eu estava com medo de ser livre?”
            Hyde não precisou olhar para os lados para acenar a cabeça desta vez. A vela estava na metade. A chama era alta e espiralava com força. O suor que descia por seu rosto se misturava ao sangue de seu corte
            __ Primeiro eu fiquei descalço. Assim, um dia abri os olhos. Percebi quanto tempo estava perdendo e fiquei descalço. Não queria saber o que me aconteceria porque minha vida até aquele momento era pensar nisso. E por isso eu não fazia nada. Eu fiz. __ Uma lágrima desceu de seu olho direito e se misturou ao suor e ao sangue. O gosto desta alquimia em sua boca era paradoxal. Doce e amargo ao mesmo tempo. Com gosto de vida.
            __ Eu senti o calor da pedra. O frio da grama e do orvalho. E foi a melhor sensação que eu já tinha sentido na minha vida. Até o vento soprou mais forte. Eu respirei fundo. Chorei. Eu vi os relâmpagos no céu. Os trovões ribombaram forte lá em cima. Eu estava com medo. Muito. Tinha alguma coisa dentro de mim que eu precisava retirar pra dar o próximo passo. Nunca fui uma coisa só. Sempre fui essa inconstância toda. __ Mais sangue. __ E naquela hora eu apenas estava aceitando as coisas. E o exorcismo tinha começado já em cima dos calçados.
            Outro sorriso genuíno. 
            __ E ao mesmo tempo que eu queria me livrar daquelas “coisas” dentro de mim eu sabia que era tudo eu. Só que sem controle. Eu precisava organizar o caos dentro de mim pra poder extrair o melhor dos dois mundos: o interno e o externo. O famigerado equilíbrio. Isso às vezes acontece, o equilíbrio, mas nunca é constante. É inconstante, igual a mim. Igual a nós. Quando a minha própria carne pede por alimento e quando esse alimento me faz mostrar uma face desconhecida, mas que é a que eu mais quero conhecer de mim mesmo. E é a que agora fala com vocês. Sem medo. Livre. __ Hyde respirou fundo enquanto sorria. As asas tremeram soltando algumas penas que espiralavam no ar como a chama da vela.
            __ Eu corri. Não lembro quanto tempo passei ali, com os pés descalços. Só sei que se eu não começasse a correr eu ficaria parado de novo. Eu me vi como se fosse uma projeção astral e vários de mim estivessem comigo correndo naquele momento. Eu não me enxergava. Eu pensava que me enxergava. Eu precisei sair de mim para me ver de verdade, me dividir em dois... Em três... Enquanto eu corria eu percebia que nunca estava só porque estava comigo mesmo. E nós iríamos pular daquela montanha. Porque se a gente fosse ficar com os pés no chão nós pararíamos em outra montanha e tudo iria se repetir. Voando, livres, poderíamos sobrevoar a mesma montanha, mas ter a liberdade. Corremos. De todos os lados. A chuva caia com força, eu sentia tudo. A terra, o ar, a água e o fogo, este vinha de dentro de mim. Eu corri. E pulei. E agora estamos aqui.
            Hyde olhou para os lados novamente. A chama da vela deu seu último suspiro em espiral. As penas que flutuavam pelo quarto caíram no chão. O sangue parou de pingar e o vento de soprar. Em cada lado um espelho. Em cada espelho um Hyde o observava. O da esquerda tinha o rosto escuro, apenas seus olhos podiam ser vistos. O da direita sorria sem parar, mas seus olhos não sorriam junto. Hyde se sentia confortável ali. Estava entre os seus. E não havia mais medo, nem restrições. As coisas só eram como eram. Suas asas chacoalharam enquanto aquele sorriso genuíno aparecia mais uma vez em seu rosto.